segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

CAMINHO DO CORAÇÃO

CAMINHO DO CORAÇÃO

Romeo Graciano

O psicoterapeuta-xamã David Geiger concilia a tradição dos índios norte-americanos com técnicas budistas e a neurolingüística, e é um guardião da cerimônia do cachimbo sagrado.

Nos EUA, seu trabalho envolve um programa de cura com jovens dependentes de drogas e integrantes de gangues.

Na feliz ocasião que nos reunia naquela tarde de feriado, descobrimos uma ótima oportunidade para o psicoterapeuta-xamã David Geiger realizar a cerimônia do cachimbo sagrado dos índios norte-americanos, antes do início da nossa conversa. Sabíamos que ele trazia o cachimbo na sua bagagem, mas não poderíamos imaginar a sua reação diante do pedido do nosso grupo de quatro pessoas.

“Qual é o motivo?”, questionou o meu entrevistado com seu jeito tranqüilo, procurando certificar-se da intenção que movia o nosso desejo. O cachimbo sagrado é um dos elementos mais importantes da tradição dos índios norte-americanos, e David, que mereceu a honra de ser um guardião dele, confessa preferir deixá-lo quieto para não aumentar ainda mais a sua responsabilidade.

A razão de acendê-lo justificou-se pela nossa vontade de fortalecer a harmonia reinante entre nós. David, então, abriu a cerimônia que antecede o uso do cachimbo, reverenciando e dando as boas-vindas aos espíritos das quatro direções, nesta ordem: sul, oeste, norte e leste. Sensibilizados pelas palavras ali proferidas, compartilhamos a suave fumaça numa atmosfera de integração com o mundo invisível.

Depois, o nosso mestre de cerimônia disse que deixaria o fornilho (a parte feminina do cachimbo talhada em pedra) e o tubo (sua parte masculina, feita em madeira e por onde se aspira a fumaça) unidos por alguns dias, quando os nossos animais de poder viriam visitar-nos durante o sono.

Pensei no lado curioso de estarmos reunidos no 11º andar de um edifício da cosmopolita cidade de São Paulo, compartilhando o cachimbo sagrado!

Senti a atemporalidade do que estávamos realizando, como se uma linha misteriosa unisse o cenário das planícies norte-americanas, terras do povo antigo, ao recinto acarpetado daquele apartamento.

Às portas do Terceiro Milênio, a tradição xamânica reafirma seu valor no despertar do homem em busca da sua real essência. Por meios e combinações que só fazem aumentar o seu impressionante potencial criativo. O trabalho do norte-americano David Geiger expressa isto com a praticidade típica do xamanismo.

Formação de homem de medicina

Na vida de David, a afinidade com o universo dos índios começou aos sete anos, na sua cidade natal, em Oklahoma. Lá ele pôde crescer entre os índios pawnes, convivendo e aprendendo com os nativos da sua idade, dormindo ao som de tambores e de canções de poder que ouvia das cerimônias noturnas próximas da sua casa. Dessa época nasceu o seu profundo amor pelos indígenas, origem de grandes amizades que David cultiva em diferentes reservas norte-americanas.

Em sua formação de “homem de medicina”, ele também foi treinado pelo xamã sioux lakota Spencer Bear Heels, entre outros, e recebeu o nome espiritual de Ging Yah Skaw Tatanka. Mas David não se considera um xamã, e admite não conhecer ninguém que carregue o cachimbo sagrado e sinta-se digno disso, inclusive porque, atualmente, apenas 20% dos índios norte-americanos mantêm viva essa cerimônia.

“O Caminho Vermelho (ou a prática do xamanismo) é o Caminho do Coração, é o chamado Caminho Feminino. Porque o feminino é a energia do receber. E, se nós temos a capacidade de receber, podemos ir muito longe. Estar fora do feminino é vivenciar a sombra do soldado que destrói”, ensina o psicoterapeuta, acostumado a trabalhar com pessoas “que têm intenção espiritual”, em grupos mistos (homens e mulheres) ou não.

Seus workshops são conduzidos nas redondezas de Dallas, no Texas, e de Boston, com diversas cerimônias dos nativos norte-americanos: tambor, bastão falante (talking stick), cachimbo sagrado, sauna sagrada e iniciação à fase adulta, além de histórias e ensinamentos do povo nativo. “Não se trata de aulas. A proposta é que as pessoas pratiquem estes conhecimentos, reivindicando o seu poder, criando a sua medicina.”

Reconhecendo-se um “agente de mudança”, David gosta de ensinar as pessoas a sentir e a lidar com as energias, próprias ou não, a conhecer os seus sentimentos e pensamentos, seus medos e limitações. A floresta é o ambiente apropriado às suas incursões autotransformadoras, onde as pessoas estão livres para vivenciar a magia, os seus sonhos.

Xamanismo para tratar problemas sociais

Seu ecletismo lhe dá condições de conciliar o xamanismo com técnicas budistas, e mesmo com a neurolingüística (ele é mestre programador neurolingüístico em Dallas). Esta última ferramenta é utilizada por David a todo momento, pois auxilia a tarefa de mudar os padrões negativos de linguagem.

“Nós criamos a nossa realidade, e fazemos isso através das palavras. Se eu tenho padrões negativos na minha fala, se acredito, por exemplo, que não tenho habilidades, que não sou bom o suficiente, vou acabar criando essas coisas para mim. A maioria das vezes isso é inconsciente”, ressalta ele, alertando-nos a descobrir as imagens verdadeiras de nós mesmos.

Transformar padrões negativos é um dos maiores desafios no seu trabalho com adolescentes e jovens envolvidos com drogas e álcool, com gangues, problemas raciais e de identidade masculina. David faz palestras e dá orientações para o Conselho Superior de Dallas de Abuso de Álcool e Droga, outra das funções deste psicoterapeuta-xamã, que também desenvolve um programa para jovens americanos marginalizados. Um valioso exemplo da utilidade da sabedoria xamânica no tratamento de problemas sociais de difícil solução, perfeitamente adaptável à realidade de qualquer cidade moderna.

“O coração desses jovens está fechado, por isso eles não têm confiança nem nos seus próprios amigos. A maioria não tem pai, não sabe onde estão os pais. Muitos são negros e alguns são menores”, relata David, dando-nos uma idéia da sua delicada tarefa em ser integralmente honesto com eles, sob o risco de comprometer suas chances de reintegrá-los. É aí que entra em ação o facilitador de situações de mudança de comportamento, proporcionando a substituição de falsos padrões, a descoberta de novos ângulos de visão, a expansão da consciência e a cura.

O bastão falante é uma técnica sob medida para elevar a taxa de honestidade interpessoal. Consiste num bastão de madeira que confere ao seu portador a liberdade de “falar o não falado”, desde que este seja o acordo sincero firmado entre todos os componentes do círculo de pessoas. Os jovens, por sua vez, começam a trocar suas dores, compreendendo que têm os mesmos sentimentos, os mesmos medos e muito das mesmas experiências. “As pessoas sentem-se reconhecidas pelo grupo, e cria-se uma espécie de tribo”, compara o psicoterapeuta.

O retorno da sabedoria antiga

A nova tribo até aceita a participação dos diretores e das autoridades de escolas, porém “eles devem chegar e tirar a gravata, o terno e os sapatos para sentar-se com o grupo e compartilhar do coração desses jovens”.

A falta de orientação à entrada do adolescente na vida adulta – outra perda não reparada por nossa civilização – é agravada pela generalizada ausência da figura paterna. David elaborou uma cerimônia com essa finalidade: “É um trabalho que os leva à figura do pai dentro deles próprios, tornando-os homens com a aceitação do mundo masculino.”

Ensinar adolescentes marginalizados a meditar ou a visualizar seus guias protetores, conversar com eles em torno da fogueira e relembrar histórias da sabedoria milenar dos índios podem ser alternativas de reabilitação que resgate o sentido do respeito pelo ser humano. Principalmente na realidade condicionada a tratar com velhas fórmulas os problemas agravados pela incontrolável crise sócio-econômica mundial.

David Geiger nos fala da presente época da humanidade, em que toda a sabedoria antiga dos povos nativos volta a ser retomada, não só pelos seus tradicionais representantes e descendentes, como também pelo homem branco. É claro que isto vem causando muito embaraço, medo e raiva nos índios norte-americanos, preocupados em saber que o povo branco vem mantendo crescente contato com suas tradições sagradas.

Assim aconteceu com a cerimônia do cachimbo sagrado, que, segundo a mitologia, foi um presente do espírito da mulher White Buffalo Calf aos índios. “Ela agora está trabalhando com o povo branco, que está aberto para o cachimbo. E ela é realmente a mão do povo nativo. O grande medo dos índios é que o povo branco comece a fazer as suas cerimônias melhor do que eles”, diz David, antevendo um tempo de maior abertura na difusão da sabedoria antiga dos povos nativos, já que existem muitos brancos servindo de canais para as suas informações.

No mínimo dois caminhos de autodesenvolvimento

Com a permissão dos índios sioux lakotas, David também realiza a sauna sagrada, em cujo interior são colocadas as pedras aquecidas que, na crença desses índios, cantam e contam coisas, dão-nos as informações de que precisamos. “As pedras são os canais dos espíritos, o fogo é o futuro, o altar é o presente e a sauna é o passado. Às vezes as pessoas chegam a ter experiências de vidas passadas”, avisa David.

Ele garante que a sauna é tão segura que não oferece riscos nem às crianças. Nela, tudo acontece a nível de energia, e as pessoas nem precisam saber nada; basta terem a intenção de deixar ir embora os seus bloqueios e ficarem receptivas ao seu “renascimento”, tornando-se mais leves e aliviadas.

“Você não precisa ir às pirâmides ou ao Tibete. Apenas visite o seu vizinho que tem uma sauna sagrada e deixe acontecer”, sugere ele.

Por fim, David Geiger nos encoraja a ter pelo menos dois caminhos de autodesenvolvimento, já que todas as informações, no fundo, são as mesmas, e assim poderemos ter mais dados para comparar. “Um único caminho é algo estranho”, conclui o psicoterapeuta-xamã, deixando-nos em silêncio.

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