Xamanismo (Mamaindê)
O poder xamânico é descrito pelos Mamaindê (um grupo Nambiquara do norte) como a posse de muitos objetos e enfeites corporais dados ao xamã pelos espíritos dos mortos e também pelo xamã que o iniciou nas técnicas do xamanismo. Assim, dentre todas as pessoas, o xamã é aquela que possui a maior quantidade de enfeites corporais.
Os dois xamãs atuantes na aldeia mamaindê estão sempre usando muitas voltas de colar de contas pretas. Um deles nunca deixa de usar uma faixa de algodão tecido ao redor da cabeça, às vezes substituída por uma única linha de algodão vermelha, e também faixas de algodão nos braços.
Os enfeites e objetos do xamã podem ser chamados de wanin wasainã’ã, “coisas mágicas”, ou waninso’gã na wasainã’ã, “coisas do xamã”. De posse dos enfeites e objetos dos mortos, o xamã passa a ver o mundo como eles, adquirindo, assim, a capacidade de enxergar as coisas que para a maioria das pessoas são invisíveis e de torná-las visíveis.
No entanto, não é apenas o xamã que possui enfeites corporais. Os Mamaindê dizem que, além dos enfeites visíveis, todos possuem também enfeites internos que só o xamã é capaz de enxergar e de tornar visíveis durante as sessões de cura. O que torna um enfeite visível ou invisível não é uma característica intrínseca atribuída a ele, mas a capacidade visual do observador. Do ponto de vista do xamã, um ser capaz de adotar múltiplos pontos de vista, o corpo dos Mamaindê se revela sempre como um corpo enfeitado.
Embora determinados objetos e enfeites sejam possuídos exclusivamente pelo xamã, o que o diferencia das outras pessoas é o fato de que ele adquire tais enfeites diretamente dos espíritos dos mortos e se torna, assim, capaz de enxergá-los. Nesse sentido,o termo “coisas mágicas” designa menos uma qualidade intrínseca às “coisas” do xamã do que as relações que ele estabelece com os espíritos dos mortos que resultam na posse dessas “coisas”.
Iniciação xamânica
Os Mamaindê descrevem a iniciação xamânica como um tipo de morte. Ao andar sozinho na floresta, o futuro xamã leva uma surra de borduna dos espíritos dos mortos e desmaia. Algumas pessoas dizem que os espíritos dos mortos também podem atingi-lo com flechas. Nesse momento, ele recebe desses espíritos vários enfeites e objetos “mágicos”. Além dos objetos, o futuro xamã recebe ainda uma mulher-espírito que é descrita como uma onça, embora o xamã a veja como gente. Ela irá acompanhá-lo, onde quer que ele vá, sentando-se sempre ao seu lado e auxiliando-o durante as sessões de cura. O xamã pode se referir genericamente aos objetos recebidos dos mortos e também à sua mulher-espírito como da wasaina’ã, “minhas coisas”. Ambos são responsáveis pelo seu poder xamânico.
A iniciação de um xamã Halotésu (Nambiquara do cerrado) foi resumida por Price da seguinte forma: um homem vai ao mato caçar e vê os animais como gente. Depois, ele encontra o espírito de um ancestral que o chama de “cunhado” e lhe dá uma mulher-espírito em casamento cantando o nome dela para ele escutar. O homem a leva para casa e só ele é capaz de enxergá-la. Essa mulher é responsável pelo seu poder xamânico e se torna a sua auxiliar, sentando-se sempre ao seu lado. Ela deve ser bem tratada sob pena de causar muitos males para todos. Com ela, o xamã tem um filho que ele vê como uma criança e que os outros o enxergam como uma onça. Esse ser vive no corpo do xamã e corporifica a sua “força espiritual”.
Tanto para os Mamaindê como para os Halotésu e outros grupos do cerrado, a iniciação xamânica parece ser concebida como um processo de morte. Para os Negarotê, segundo Figueroa (1989), o processo de iniciação do xamã, chamado de “visionário no sonho”, equivale a um tipo de reclusão: o xamã iniciante permanece em uma casinha feita com folhas de buriti especialmente para esse fim e, durante este período de reclusão recebe “certo acompanhamento instrutivo de um xamã maduro que invoca, com cantos e falas, a vinda dos ancestrais enquanto protetores e auxiliares”.
Essa prática não se constitui como um tipo de aprendizado formal, todas as técnicas de xamanismo (sucção de objetos patogênicos, sopro com fumaça de tabaco, cantos etc.) são aprendidas informalmente através da observação do desempenho de outros xamãs experientes. Dentro da casa de reclusão o iniciante deve ingerir grandes quantidades de chicha (bebida fermentada) previamente preparada pelas mulheres e proclamar que são “muitos” os que estão bebendo por ele. Figueroa afirma, ainda, que “o candidato canta, bebe e fuma ininterruptamente, usa urucum aplicado ao corpo, porta enfeites de buriti nos pulsos, colar de algodão fofo e pode usar colares de algodão com dentes de onça”.
Como vimos, para os Mamaindê, o episódio do encontro com os espíritos dos mortos na floresta pode ser considerado o caso emblemático da iniciação xamânica. Entretanto, a pessoa também pode ser iniciada por um xamã mais velho que vai, como eles dizem em português, lhe “passando a linha”.
Um dos xamãs atuantes na aldeia mamaindê me contou que recebeu a sua linha (kunlehdu) de um xamã já falecido que morava na mesma aldeia que ele. Aos poucos, ele foi lhe passando as suas “coisas” até ele se tornar um xamã. Ele disse que o colar do xamã costuma ser mais forte do que o das outras pessoas e que, portanto, não arrebenta com facilidade. Além dos enfeites corporais, ele também recebeu deste antigo xamã alguns objetos: pedras, dentes de onça, cabaça, arco, flechas e uma espada de madeira usada para matar os espíritos do mato durante as sessões de cura. Acrescentou, ainda, que recebeu, há alguns anos atrás, outras “coisas” (uma pedra e um colar com dente de onça) de um xamã Kithaulhu que esteve visitando os Mamaindê por ocasião de uma festa da menina-moça para a qual os Kithaulhu foram convidados.
Assim, o xamã iniciante deve acompanhar sempre um xamã mais velho para aprender tudo o que ele sabe, especialmente as músicas de cura. Em determinado momento, o xamã mais velho fará o iniciante passar por um teste decisivo: ele deverá ficar uma noite inteira no mato sozinho, sem armas. Durante esse período, o xamã enviará vários animais (cobra, onça) para assustá-lo. Mas ele deverá enxergar esses animais como gente e conversar com eles pedindo-lhes que não o ataquem. Se ele se assustar e correr, o xamã saberá e não irá mais lhe passar as suas “coisas”.
É interessante notar que, neste caso, o encontro do xamã iniciante com os animais que são enviados por outro xamã não é muito diferente do encontro com os espíritos dos mortos na floresta, mencionado como o caso emblemático da iniciação xamânica. Devo lembrar que, de acordo com os Mamaindê, os espíritos dos mortos podem se transformar em animais, especialmente em onças. Como vimos, a mulher-espírito que o xamã recebe dos espíritos dos mortos também é descrita como uma onça.
Por ser extremamente visível aos espíritos do mato, o xamã iniciante deve tomar uma série de precauções. Além de evitar afastar-se muito da aldeia para que os seus enfeites não sejam roubados por outros seres, ele também deve respeitar uma série de restrições para manter junto de si seus enfeites corporais e a sua mulher-espírito. Ele não deve comer coisas quentes nem assoprar o fogo, pois o calor espanta a sua mulher-espírito e rompe seus enfeites corporais. Ele também não deve trabalhar muito nem carregar muito peso para não arrebentar seus enfeites, e não pode falar alto para não assustar a sua mulher-espírito que pensará que ele está brigando com ela.
Os cuidados que o xamã deve tomar com a sua alimentação visam, sobretudo, estabelecer e assegurar o casamento com a sua mulher-espírito que, como dizem os Mamaindê, “passa a comer sempre junto com ele”. Além das restrições alimentares, o xamã também deve respeitar restrições sexuais. Ele não pode namorar muito porque a sua mulher é muito ciumenta e bate nele, provocando o rompimento dos seus enfeites corporais.
A transmissão dos enfeites de um xamã para outro é uma operação reversível. Conseqüentemente, a posse dos enfeites corporais nunca é vista como uma condição definitiva ou um atributo intrínseco do xamã, mas, ao contrário, como uma condição instável que requer um esforço constante para ser mantida. Por esse motivo, muitas pessoas deixam de ser xamãs, pois não suportam as restrições impostas àqueles que se relacionam tão intimamente com os espíritos dos mortos.
O ofício do xamã é, assim, algo necessário para os vivos, mas extremamente perigoso para o xamã. Aqueles que não agüentam submeter-se às restrições necessárias para adquirir e manter o poder xamânico correm o risco de morrer vítimas da vingança dos espíritos dos mortos que, deixando de atuar como seus parentes, passam a atuar como inimigos, provocando acidentes e doenças.
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